Archive for Agosto, 2006

Sobre uma Imagem de Guerra

Já vimos
todas as imagens de Varsóvia
da Somália ou de Saigão.Vimos
todos os gritos de terror
da criança a preto e branco
a branco e preto
a preto e sangue
a criança que ficou desmembrada na cratera da imagem
convocando para sempre
os navios da demência e da vergonhaJá vimos
imagens de todas as guerras
em todos os cantos da geografia do pavor.Mas o cheiro não vem nas imagens.
Digo o cheiro azedo.
O insuportável cheiro a medo e morte
o cheiro a carne a arder
o cheiro a ódio que desliza pelo metal bem oleado
e retalha a carne jovem
até dela só restar
dor e lama negra
negra e dor.

As imagens que já vimos
trazem o olhar vazado
e frente a elas
os poemas são inúteis.Para lá da composição,
para lá do papel e do grão,
no sítio do precipício
onde Munch enlouqueceu,
todas as palavras são crucificadas
e todos os nomes naufragam no vitríolo
e as pétalas da rosa
caminham estupefactas
para dentro da podridão.

José Fanha, in “Poemas da linha da frente” o livro inclui poemas de José Fanha e de José Jorge letria sobre o tema guerra.

Agosto 31, 2006 at 10:45 am Deixe um comentário

Poema desconhecido

Antes de mais quero pedir desculpa aos nossos leitores. Encontrei este poema na Net e não sei o título nem o autor. É um verdadeiro Poema do Mundo.Por isso, lanço aqui o desafio. Quem conseguir identificar este poema ganha uma conversa no msn com a equipa do blog para discutir poesia! Boa Sorte!

Acerta a tua voz
pelo rigor da ternura
acerta o coração
pela violência do grito
acerta o teu olhar
pelas lágrimas da vida
E não
pelo discurso,
pelo relógio,
pelo apito
que marca a hora certa
da entrada e da saída.

Agosto 30, 2006 at 10:17 pm 96 comentários

Arrojos

Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos “mignonnes” (1) e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.

Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.

Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.

Cesário Verde
Lisboa, Diário de Notícias, 22 de Março de 1874

Agosto 30, 2006 at 6:01 pm 1 comentário

Minuciosa formiga

Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.

Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.

Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.

Assim devera eu ser
se não fora não querer.

Alexandre O’Neill

Agosto 30, 2006 at 5:40 pm 4 comentários

Nuvens correndo num rio

Nuvens correndo num rio
Quem sabe onde vão parar?
Fantasma do meu navio
Não corras, vai devagar!

Vais por caminhos de bruma
Que são caminhos de olvido.
Não queiras, ó meu navio,
Ser um navio perdido.

Sonhos içados ao vento
Querem estrelas varejar!
Velas do meu pensamento
Aonde me quereis levar?

Não corras, ó meu navio
Navega mais devagar,
Que nuvens correndo em rio,
Quem sabe onde vão parar?

Que este destino em que venho
É uma troça tão triste;
Um navio que não tenho
Num rio que não existe.

Natália Correia

Agosto 30, 2006 at 5:20 pm 2 comentários

Eu cantarei de amor tão docemente

Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.

Luís de Camões

Agosto 30, 2006 at 5:18 pm 2 comentários

Geografia

Do meu lugar não há registos
nem mapas
nem retratos.

Para falar dele terei de mencionar
um raio de sol manso
a nascer na transversal
das tábuas do soalho.

O meu lugar é a pura geografia.
Sem o sítio.
Mais o sítio.
Continente doce onde se inscreve
o pão de cada dia
e a mecânica dos ossos a ranger.

No meu lugar
a primavera nasce
suave e rumorosa
suspensa sobre pétalas de luz.
Cada pequeno animal
sai da pedra que o protege
e corre pelo seu mundo que é também o meu mundo
e leva os meus olhos
e regressa com perguntas.

O meu lugar existe
porque existe uma andorinha a dançar
em seu redor
e tudo se torna verde e depois maduro
e há um sumo de laranja
que escorre dos lábios por volta do meio-dia.

No meu lugar há círculos abertos
e todas as poções intentam misturar-se
para que a voz do coração se torne
num ofício de ventos e de cravos.

O meu lugar
é tão belo.

É tão belo
e tão breve
o meu lugar.

José Fanha

Do blog de José Fanha em zefanha.blogspot.com

Agosto 30, 2006 at 10:58 am 7 comentários

Quase

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido…

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo … e tudo errou…
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim…
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Momentos de alma que,desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Mário de Sá Carneiro

Agosto 29, 2006 at 6:37 pm 2 comentários

Respiro o teu corpo

Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

Agosto 29, 2006 at 6:19 pm 1 comentário

As palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

Agosto 29, 2006 at 6:15 pm Deixe um comentário

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Poemas do meu Mundo que ardem vivos em meu olhar que no coração escavam bem fundo e que não o deixam pulsar...

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