Archive for Agosto, 2006
Além-tédio
Nada me expira já, nada me vive —
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.
Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital…
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.
Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.
Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu… Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!
Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios…
Mário de Sá-Carneiro
Ápice
O raio do sol da tarde
Que uma janela perdida
Refletiu
Num instante indiferente —
Arde,
Numa lembrança esvaída,
À minha memória de hoje
Subitamente…
Seu efêmero arrepio
Ziguezagueia, ondula, foge,
Pela minha retentiva…
— E não poder adivinhar
Porque mistério se me evoca
Esta idéia fugitiva,
Tão débil que mal me toca!…
-Ah, não sei porquê, mas certamente
Aquele raio cadente
Alguma coisa foi na minha sorte
Que a sua projeção atravessou…
Tanto segredo no destino de uma vida…
É como a idéia de Norte,
Preconcebida,
Que sempre me acompanhou…
Mário de Sá Carneiro
Porque
Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Qualquer Música
Qualquer música, ah, qualquer,
Logo que me tire da alma
Esta incerteza que quer
Qualquer impossível calma!
Qualquer música – guitarra,
Viola, harmônio, realejo…
Um canto que se desgarra…
Um sonho em que nada vejo…
Qualquer coisa que não vida!
Jota, fado, a confusão
Da última dança vivida…
Que eu não sinta o coração!
Fernando Pessoa
O Menino da Sua Mãe
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho unico, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino de sua mãe.»
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe
Fernando Pessoa
Quem diz que amor é falso ou enganoso
Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.
Amor é brando, é doce, e é piedoso.
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.
Se males faz Amor em mim se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.
Mas todas suas iras são de Amor;
Todos os seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria.
Luís de Camões
Retirado de http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/camoes.html